Tem vindo a crescer uma contestação cada vez mais visível ao regime no poder em Angola. Alegadas violações de direitos humanos e aparente corrupção atribuída aos mais altos círculos do regime enchem relatórios que circulam por três continentes e tentam alertar a opinião pública internacional para uma urgente necessidade de mudança.
Fui à procura das vozes dissidentes e encontrei-me com um angolano que vive em frenética militância entre a Europa, África e América, divulgando o que se passa no seu país.
Encontrei-me com ele numa noite de confidências e revelações, num "algures" onde tenta estar discreto, enquanto divulga uma mensagem que dirige à opinião pública, num grito de alerta e pedido de ajuda. A guerra encontrou-o com oito anos, em Malange, e cedo percebeu "que Portugal não estava no lado justo", o que condicionou a sua vida a partir de então. A primeira recordação de injustiça vem-lhe de uma frase que confidenciou à família ainda em criança: "Não gosto dos polícias porque batem nos pretos!". |
É verdade que foram cometidas atrocidades no início da guerra?
Atrocidades todos cometeram, os dois lados. Os portugueses cometeram-nas, os angolanos cometerem-nas. Inicialmente, foi muito uma luta entre negros e brancos, não tanto pelos valores da liberdade.
Hoje, um processo semelhante de luta está a acontecer em Angola, há uma reprodução da dominação colonial, feita, paradoxalmente, por aqueles que combateram o colonialismo português. A maioria da população é hoje dominada por um sistema "endocolonial", que é a dominação de um grupo pequeno, dominação política, económica, cultural e militar, sobre a maioria, que muitas vezes é excluída como se de cidadãos não se tratasse. Exactamente como fazia o colono antigamente.
Qual foi a diferença entre as descolonizações do tipo britânico e aquelas que se seguiram a um levantamento armado? Nenhuma descolonização foi boa, também houve os "mau-mau" no Quénia e o fenómeno Ian Smith na Rodésia. Mas a portuguesa foi pior, o Salazar foi teimoso, não aceitou as propostas dos líderes nacionalistas em 1961, não entendeu o recado da Índia e provocou um desgaste militar que conduziu ao Movimento das Forças Armadas. Houve, nas colónias, uma transferência de poderes de estado, mas não houve, em nenhum caso, um momento pós-colonial, porque o colonialismo, tanto o britânico, como o francês ou o português, reproduziu-se nas pessoas que ocidentalizou. Eles adquiriram os métodos de dominação dos senhores antigos e reproduziram o colono no seu modo de governação, continuando-o. O interesse económico de exploração permaneceu e, se nós considerarmos Clausewitz, "a política é a expressão concentrada da economia". Isso tem sido particularmente significativo para Angola, que é a mais rica das ex-colónias portuguesas. |
Uma última coisa sobre o período de transição: havia racismo?
Havia. Sempre houve. Racismo extremo, branco contra negro, que acabou por suscitar também um racismo negro contra branco. Essa situação ainda existe, Angola é um país com problemas raciais e não trata deles. Existem muitos problemas inter-étnicos no mosaico angolano.
E o percurso até hoje? Havia três forças que não se entenderam, enquadradas pela situação geo-estratégica internacional, o MPLA ligado ao bloco de leste, o FNLA aos Estados Unidos e a Unita primeiro à China, depois ao ocidente e mesmo à África do Sul. A luta já não era contra o colonizador, mas entre esses movimentos. Foi então que o MPLA capturou o estado e estabeleceu um regime absolutista. Eu estive no exército e desertei das forças armadas, da Escola de Oficiais de Huambo: deixei de estar de acordo com o regime. Fui preso e consegui sair do país, vivi exilado em Cabo Verde. |
Essa usurpação do poder e dominação pelo MPLA permaneceu até aos acordos de Bicesse e ao fim da guerra, mas a alegada transição para um estado pluri-partidário de direito democrático, a que a Constituição de Angola obriga, ainda decorre e não aconteceu.
Eu surjo com uma luta que se opõe ao que continua a acontecer, que são atropelos aos direitos humanos, às aspirações das pessoas e recusa do direito à cidadania, especialmente nas áreas em que nos movimentamos, que são as relacionadas com a habitação e a posse da terra. A SOS Habitat é uma associação que tenta realizar uma luta legal, pacifista e apartidária. Quais são os direitos violados, que se passa em Angola? Têm havido desalojamentos forçados, sem notificação, e expropriações que não respeitam o artigo 12.4 da lei constitucional, que obriga ao respeito da posse da terra pelas pessoas e define normas de expropriação que não são cumpridas. Essas expropriações e demolição das casas são feitas com recurso ao uso das armas. O ambiente político garante completa impunidade a estes actos. |
Artigo 12º da Lei Constitucional, Alínea 4 O Estado respeita e protege a propriedade das pessoas , quer singulares quer colectivas e a propriedade e a posse das terras pelos camponeses, sem prejuízo da possibilidade de expropriação por utilidade pública, nos termos da lei. | Artigo 445º do Código Penal (usurpação de imóvel) Se alguém, por meio de violência ou ameaça para com as pessoas, ocupar coisa imóvel arrogando-se o domínio ou a posse, ou o uso dela, sem que lhe pertençam, será punido com pena de prisão de três dias a dois anos. | Artigo 472º do Código Penal (dano em edificação ou construção pertencente a outrem) Aquele que por qualquer meio derrubar ou destruir, voluntariamente, no todo ou em parte, edificação ou qualquer construção concluída ou somente começada, pertencente a outrem ou ao Estado, será condenado (...) |
Sebastião Manuel, 4 tiros na perna |
José Valentim, 3 tiros na perna | José João Fernandes, 1 tiro na cabeça perdeu a fala |
Este documento circula pela comunidade internacional, com fotos de angolanos alegadamente alvejados a tiro pela Polícia em 21 de Junho de 2004, na comunidade de Wenji Maka, num acto de expropriação destinado a entregar as terras em que habitavam à Igreja católica, por concessão do governo de Angola. |
Qual é o objectivo dessas expropriações? Salvo raras excepções, é para construção de habitação, pelo próprio estado ou por empresas a ele ligadas. São expulsos os mais desprotegidos, menos instruídos, mais pobres, para nesses sítios construir novos projectos de entidades públicas e privadas. Por exemplo, o projecto "Nova Vida", em Luanda, segundo a sua própria divulgação, destina 20% da construção a funcionários do estado e 80% ao mercado de venda. O que acontece às pessoas desalojadas? Regra geral permanecem nos escombros das suas casas demolidas até que chegue a construção e depois vivem à beira da estrada, ao abandono. Isso passa-se em Luanda, ou noutros sítios também? Passa-se em Luanda, mas também noutros sítios que eu não quero mencionar aqui, para não espantar ninguém, porque tencionamos agir lá. Mas em Luanda adquiriu foros de prática generalizada de obtenção de terras pelo poder ou por clientela do poder. |
Há uma atitude escandalosa, irresponsável, da comunidade internacional e dos empresários internacionais, que se calam - e não só estes, mas os representantes dos seus governos, quando são colocados perante a violação de direitos humanos. Esses empresários e os estados que os protegem estão silenciosos, para não irritar o poder e garantir os seus interesses, aproveitando-se e obtendo rendimentos à custa do sacrifício de muita gente. É uma forma de chantagem a que se submetem. |
É preciso que quem vê Angola como uma oportunidade de negócios e a comunidade internacional que está a investir lá se torne mais ética e mais respeitadora de valores humanistas.
| Isso significa que o povo angolano não beneficia do investimento feito no país? Angola exporta quase dois milhões de barris de petróleo diariamente e o povo angolano vive com pouco mais de um dólar e meio por dia. O grande crescimento económico que se tem registado em Angola não alterou até agora, absolutamente nada, a vida das pessoas. |
Estamos numa situação de endocolonialismo, há de facto uma elite, uma minoria e seus associados, que têm conhecido uma vida melhor, mas a maioria do povo angolano não viu grandes modificações na sua existência.
Continua a viver em espaços degradados, a ter dificuldade no acesso à justiça, à educação, à saúde...
...qual é a taxa de iliteracia em Angola? Estima-se que seja superior a 50%. A comunicação social é controlada pelo estado? Nós somos um exemplo, temos visibilidade fora do país, mas como somos críticos e contestamos, não temos acesso à televisão em Angola, não passamos na rádio nacional, não saímos no Jornal de Angola, o que demonstra que os órgãos de comunicação pública não são plurais. Já fomos atacados por governantes, nesses órgãos, e nunca nos deram sequer a possibilidade de responder. |
Existem 126 organizações políticas registadas em Angola; qual é o papel delas? A maioria de toda a constelação de partidos, sindicatos e associações é pouco mais que um colar ornamental para dizer ao mundo que isto é uma democracia e que há pluralismo e liberdade. Existe, então, uma concentração de poder? Existe o Partido-Estado, em moldes de exercício de poder endocolonial, e uma integração na economia de mercado nos moldes do colonialismo. Quem cresce nessa economia de mercado é uma elite, o gentio continua a ser gentio e não tem direitos. Muita gente não tem sequer Bilhete de Identidade. Então como estão os recenseamentos? Não há recenseamento. Nunca mais houve um censo da população. A lei diz que a moratória para legalização da terra é de três anos... como é que um indivíduo que não tem Bilhete de Identidade pode legalizar a terra? |
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Às vezes acusam-nos de sermos desordeiros, mas o maior perturbador da ordem em Angola é o governo, é quem mais desordena, por negligência, incompetência, demissionismo, omissão. Quem mais desordena a vida de Angola chama-se "Governo de Angola", esse governo que está lá, do José Eduardo dos Santos, pode publicar, afirmado por mim! |
A Constituição da República Popular de Angola diz que deve haver eleições regulares. Há?... A Constituição diz muitas coisas que não são respeitadas. É apenas letra vertida no papel, pouco mais. O José Eduardo dos Santos está no poder desde 1979. Não há eleições desde 1992... e a lei eleitoral diz que o Presidente só pode exercer dois mandatos... Estas eleições que anunciam, eu não estou à espera delas. Não vão mudar nada. Eu não me revejo em nenhum partido angolano. As relações de poder dentro dos partidos não são democráticas, não são de liberdade. O autoritarismo que tem caracterizado a história da vida partidária de Angola é, em maior ou menor grau, comum a quase todas as organizações. |
O que se passa, de facto, nos círculos do poder? A articulação dos dignitários do regime com o poder, mesmo os que vêem de famílias humildes, faz com que, de repente, apareçam como donos de imensas fortunas e com uma presença na economia do país, e fora, que não pode ter vindo dos seus salários, como estão na lei. Então eles têm programas de combate à pobreza e não ensinam às pessoas a sair dela?... Têm sido apontados com os piores adjectivos, mas isso já nem os incomoda: os cães ladram e a caravana passa! |
Onde é que entra, nessa equação, a riqueza de Angola, o petróleo, os diamantes?...
Gostava de saber... O dinheiro deve entrar, em princípio, nos cofres do estado... como é usado não sei! O que sei é que o povo de Angola está pobre, está na miséria absoluta. Continua morrer uma em cada quatro crianças antes dos cinco anos de idade. A longevidade é de 38, 39 anos.
Como é que se resolve o problema? Eu tenho uma proposta. É um pouco como fazer Ctrl-Alt-Del no computador, um "reset" ao sistema angolano... ...mas isso é uma revolução... Não! Pode ser entendido assim, mas seria uma revolução pacífica. Seria, primeiro, fazer um recenseamento e eleições autárquicas, em todos os municípios - um redesenhar político do país. Seria o início de um processo democrático que acabaria com a hegemonia da administração pelo MPLA. Estaríamos apenas o fazer o que manda a lei! A seguir, passaríamos a eleições legislativas para uma assembleia constituinte com um mandato curto, para definir que país Angola deve ser, porque a Constituição actual não emana do povo, ele nunca foi consultado. Então sim, passar-se-ia à eleição da primeira legislação da terceira república e às eleições presidenciais. Devíamos, nesse processo, purgar o estado de todos os desordenadores que o têm na mão. |
Quem pode despoletar um processo desses?
Isto não acontece por causa da vontade de meia dúzia. A sociedade é que tem que adquirir a maturidade que conduza à expressão da vontade geral. O povo sabe o que quer, só tem que poder dizê-lo e escolher quem o possa ajudar a consegui-lo.
E onde estão essas pessoas?
Há muito boa gente, competente, capaz, de várias gerações. Até agora foram excluídos, aqueles que ousaram contestar as lideranças foram marginalizados e muitas vezes reprimidos até à morte. Mas há muitos, na sociedade civil, em alguns partidos políticos, nas igrejas, nas comunidades. Existe gente suficiente para governar o país com respeito, com garantia dos direitos de todos.
Acredita que isso vai acontecer?
A prazo vai acontecer, esse é o sentido da História! Ghandi dizia uma grande verdade: "Todas as tiranias, mesmo as mais poderosas, acabaram sempre por cair um dia!"
O processo está em curso!
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Um comentário:
Pouco se sabe de tudo isso, pois não é o que ocupa e o que parece não interessar aos noticiários.
Uma pena..., uma pena.
Abraços, e parabéns à divulgação que você faz.
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