Petróleo gera pobreza no paradoxo angolano
No país mais rico da África, um terço das crianças morre antes dos 5 anos e milhares são mutiladas por minas
BLAINE HARDENThe New York Times
LUANDA - Avaliado em razão da abundância de seu petróleo e de sua reduzida população, Angola possivelmente é o país mais rico da África. Mas, pela sua experiência, Antonio Dodge Domingo não concordaria com isso. De dia e de noite, a sacada de seu apartamento, no segundo andar de um prédio, é salpicada de excrementos humanos. Seus vizinhos dos andares superiores estão sempre atirando baldes cheios de imundície.
Em Luanda, capital do país, Domingo, a mulher, sete filhos e centenas de vizinhos ocupam um prédio inacabado de 17 andares, sem eletricidade, sem telefones, sem elevadores, sem janelas, sem nenhuma coleta de lixo e nenhum encanamento. Há 25 anos, um construtor abandonou a estrutura de concreto e fugiu para Lisboa logo após a independência de Portugal.
Os filhos de Domingo sofrem freqüentemente de disenteria, provavelmente porque costumam brincar na sacada ou por causa da água marrom que escorre pelas paredes da cozinha. Contraíram também malária transmitida por mosquitos de uma lagoa vizinha do prédio. O lixo atirado do prédio "acarpeta" a lagoa. Nos dois últimos anos, três crianças da vizinhança morreram afogadas em meio ao lixo da lagoa.
"Absolutamente não estou satisfeito, mas não tenho outra saída", disse Domingo, de 48 anos. Doutor em ciência política pela Universidade de Bombaim, ele dirige uma escola particular de inglês e mora no prédio há oito anos. "Tenho que viver agora de acordo com a realidade de meu país."
Durante décadas, a realidade em Angola é regida pelo paradoxo da abundância: a riqueza do petróleo tem ajudado a financiar uma guerra interminável entre o presidente da república, Eduardo dos Santos, e seu grande inimigo, Jonas Savimbi, líder dos rebeldes da UNITA. Isso contribuiu para aumentar a pobreza e a falta de saúde de quase todos os angolanos. Este país tem o maior índice de pessoas mutiladas por minas de todo o mundo (1 para cada 133). Um terço das crianças morre antes de completar cinco anos. A expectativa de vida é de apenas 42 anos.
Se o paradoxo se mantiver, Angola está madura para uma miséria ainda maior.
Recentes descobertas ao largo da costa tornaram este país um dos mais fortes produtores de petróleo do mundo. A produção provavelmente duplicará nos próximos cinco anos.
Para os Estados Unidos e outros países ocidentais sedentos de gasolina, o petróleo faz de Angola mais do que simplesmente mais uma nação problemática da África. Angola já responde por 7% do consumo anual de petróleo dos EUA e provavelmente por pelo menos 10% até 2005.
O malcheiroso apartamento de Domingo, no centro de Luanda, não é absolutamente excepcional. A capital tem 4 milhões de habitantes, mas apenas cerca de 20 mil têm água corrente ou banheiros modernos. Na maré baixa, ao longo da Marginal - a via que se estende, em curva, ao longo do Atlântico, na Baía de Luanda - o cheiro de esgoto é tão avassalador que é difícil andar sem sentir náuseas.
Segundo os especialistas, o governo poderia facilmente dar-se ao luxo de construir uma rede de tratamento de esgotos e canalizar água potável para a cidade. Existem dois rios próximos e a guerra está longe da capital. Devido a essa falta, milhões de pessoas pobres de Luanda pagam até 10 mil vezes mais caro pela água potável do que a elite, que pode abrir uma torneira.
Todas as noites, a polícia e os soldados isolam o centro da capital, onde mora a elite governante, formada por cerca de 30 famílias. O governo não quer pessoas revoltadas invadindo os melhores bairros depois do anoitecer.
Em todo o país - rico em minerais e terras imensamente férteis - o governo oferece a seus 12 milhões de cidadãos, a desigualdade e a repressão. Mais de dois terços das crianças angolanas chegam à idade adulta com apenas quatro anos ou menos de escola. As taxas de analfabetismo - 50% para os homens, 70% para as mulheres - são elevadas até mesmo pelos padrões africanos. E estão aumentando.
Enquanto isso, os filhos das famílias da elite que fazem parte do governo estudam no exterior por conta do Estado. As bolsas de estudo concedidas pelo governo a esses privilegiados consumiram até 36% de todos os gastos oficiais em educação.
No ano passado, de acordo com representantes do governo americano, os dirigentes angolanos gastaram na compra de armas cerca da metade dos lucros inesperados com o aumento do preço do petróleo, estimados em US$ 900 milhões. Muitas dessas armas foram compradas unicamente para proveito pessoal.
Segundo funcionários do governo americano, os dirigentes de Angola parecem ter roubado parte substancial daquilo que não gastaram em armas.
Representantes de bancos internacionais afirmam que os US$ 900 milhões não constam do orçamento nacional publicado.
Executivos de companhias americanas de petróleo dizem ironizando que "contribuem pecuniariamente" para o principal programa de desenvolvimento comunitário da Angola: a transferência de dinheiro para os bancos de Zurique e Genebra.
A BP Amoco, Chevron, Exxon Mobil e outras 24 companhias de petróleo estão planejando investir cerca de US$ 19 bilhões em Angola nos próximos 10 anos, para fazer perfurações em águas profundas ao largo da costa.
Existe um amplo nervosismo entre as companhias multinacionais de capital aberto, temerosas de que a publicidade negativa sobre corrupção, injustiça social e violações dos direitos humanos possa pôr em risco os investimentos.
Executivos do petróleo lembram-se da reação dos consumidores americanos que boicotaram a Shell quando vincularam a empresa às violações dos direitos humanos e ao enforcamento de um famoso dissidente, praticados pelo governo militar da Nigéria no início da década de 1990.
"Sabemos que vamos ser estreitamente fiscalizados", disse David Rice, alto assessor político da BP Amoco em Londres, que no ano passado se aliou a outras três companhias de petróleo para comprar, por US$ 350 milhões, os direitos de exploração de um campo de petróleo na costa angolana. "Este é um maravilhoso coquetel para chamar a atenção do público mundial: petróleo, diamantes, guerra civil e minas terrestres.
Se nos considerarem parte do problema, sairemos perdendo. Temos de ser considerados parte da solução."
O Departamento de Estado e o Fundo Monetário Internacional estão insistindo para que Angola realize reformas capazes de abrir sua economia e gaste muito mais dinheiro do petróleo em serviços sociais.
"Estamos convencidos de que eles deverão fazer isso", disse um funcionário do governo. "Se eles forem sérios em seu propósito de reconstruir o país, terão de seguir uma série de regras diferentes das que seguiram no passado."
Durante décadas, o governo angolano apresentou a guerra civil como uma desculpa para justificar todas as falhas. A guerra com a UNITA, que começou antes da independência de Angola em 1975, absorveu a maior parte do dinheiro do petróleo, enquanto a infra-estrutura do país era arruinada.
Mas o governo finalmente parece estar vencendo. A UNITA foi expulsa da região do vale do Rio Cuango, rica em diamantes. Analistas militares dizem que os rebeldes não têm mais a receita dos diamantes, necessária para financiar grandes operações terrestres.
Enquanto a produção de petróleo cresce e as lutas diminuem, a guerra não é mais uma desculpa universal para a má administração do governo, como o reconheceu o presidente Eduardo dos Santos num discurso recente.
O governo anunciou que irá gastar US$ 250 milhões em novos programas para reconstruir a infra-estrutura e conceder empréstimos a pequenas empresas.
Pela primeira vez, prometeu ao FMI que irá autorizar a vinda de auditores externos para examinar sua maneira de gastar o dinheiro.
O FMI e o governo americano estão dispostos a aceitar um acordo que deixaria de lado a corrupção passada e insistiria apenas na futura abertura.
Os Estados Unidos precisam do petróleo de Angola e as autoridades americanas admitem que essa necessidade refreia sua vontade de criticar o governo ou exigir demais em pouco tempo. "Isso é realismo", disse um funcionário do Departamento de Estado.
Sob outros aspectos, Angola parece impermeável à maior abertura que agora se vê em grande parte da África. Quando algumas pessoas se reuniram nas ruas de Luanda, em fevereiro, para protestar contra um aumento de 1.600% nos preços da gasolina imposto pelo governo, a polícia reprimiu os manifestantes usando granadas de gás lacrimogêneo e cassetetes. Um jornalista e ativista dos direitos humanos, Rafael Marques, foi condenado em março a seis meses de prisão por ter escrito um artigo acusando o presidente José Eduardo dos Santos de corrupto.
Como eu vi Angola
Texto de JOSÉ ANTÓNIO SARAIVARevista Expresso - 24/06/00
Angola é um país devastado. À volta das cidades multiplicam-se os bairros de lata e os campos de desalojados, onde vegetam pessoas fugidas à guerra. Nem mais um prédio se construiu depois da independência. A vida só agora começa a despontar - mas o país vai precisar de um forte apoio estrangeiro e sobretudo dos portugueses.
O leitor imagine uma cidade que foi vítima de um bombardeamento com armas químicas e cujos habitantes morreram. Muitos anos depois, outras pessoas, vindas de outros lugares, vão invadindo a cidade e tomando conta dos edifícios. Os prédios estão degradados, porque estiveram décadas ao abandono. Têm as paredes sujíssimas, os vidros partidos e as ferragens cobertas de ferrugem. As pessoas que vieram de fora não conhecem este tipo de edifícios e portanto não sabem recuperá-los: limitam-se a substituir os vidros por plásticos, tábuas ou tijolos, deixam as paredes sujas e não limpam a ferrugem. Os prédios em construção ficam por concluir - com as estruturas inacabadas, o betão aparente e os varões de ferro à mostra.
Foi esta a imagem que me sugeriu Luanda, que eu nunca tinha visitado.
A parte construída pelos europeus, que forma um anel de prédios altos circundando a baía, está exatamente como devia estar no dia 25 de Abril de 1974, com uma diferença importante: visto que desde aí não teve qualquer manutenção, está muitíssimo degradada. O edifício da Casa da Sorte é emblemático a este respeito: permanece intacto, com o nome bem presente na fachada, mas percebe-se que fechou nesse dia e nunca mais abriu a porta: tem o interior cheio de pó, as pinturas descoradas, os vidros das montras rachados e as grades que protegem a entrada totalmente calcinadas.
Nesta zona européia da cidade apenas meia dúzia de edifícios foram recuperados, como a elegante sede do Banco Nacional de Angola ou o novo palácio presidencial. Todos os outros foram ocupados por famílias pobres ou fecharam. E nem um só prédio foi construído depois de 1974. Os que estavam em construção pararam. Até um gigantesco monumento em memória de Agostinho Neto, que pertence à época em que Angola estava ligada ao bloco soviético e é visível de quase toda a cidade (fazendo lembrar um Sputnik), ficou por acabar e parece condenado a permanecer assim para sempre. O piso de muitas ruas, mesmo do centro da cidade, está completamente destruído: o asfalto desapareceu e deixou à vista a terra batida, que forma altos e baixos onde os carros saltam.
O que aconteceu de novo em Luanda foi o crescimento desmesurado de um bairro de lata em forma de leque que cerca a parte européia e penetra mesmo no tecido urbano, ocupando os interstícios. São os musseques. Aí vivem os milhões de angolanos que foram atraídos como mosquitos pelas luzes da cidade ou que vieram fugidos à fome e à guerra. Passam muito mal. Não há água canalizada, os esgotos são a céu aberto e as pessoas - sobretudo mulheres e crianças, muitas crianças - passam o dia sentadas no chão, no meio de charcos de água cheios de detritos. Sempre que há um bocado de parede livre pode ler-se, em grandes letras, «Proibido urinar» ou, mais diretamente, «Não mijar aqui».
Uma das coisas que impressionam em Luanda é a quantidade de pessoas nas ruas. Quer na cidade quer nos musseques, as ruas estão apinhadas de gente que se dedica à venda de tudo o que se possa pensar: um peixe, um cabide de pé, um par de calças, saquinhos de plástico com água, latas de refrigerante. Não vejo, porém, ninguém a comprar. Por isso é difícil compreender do que vivem estas pessoas.
Mas a promiscuidade maior verifica-se no Roque Santeiro, o gigantesco mercado espontâneo que se formou às portas de Luanda quando a famosa telenovela brasileira passava na TV. Aí, no meio da terra, na falda de uma encosta, milhares de vendedoras e vendedores amontoam-se quase encostados uns aos outros, vendendo coisas inimagináveis nas quantidades mais ínfimas: um maço de tabaco vendido cigarro a cigarro, páginas de jornal, um dedo de leite no fundo de uma garrafa. As únicas clareiras que existem são lixeiras, onde restos de toda a espécie - embalagens, trapos velhos e matéria orgânica em decomposição - ardem fumegantes em fogo lento, empestando o ar.
No entanto, em Luanda há muita alegria. Ouve-se rir. Os rapazes têm um olhar vivo e penetrante e as raparigas arranjam-se com um gosto que surpreende. As angolanas na idade da adolescência são excepcionalmente bonitas, têm um rosto expressivo, um olhar brilhante onde é patente uma sensualidade tropical, são altas e têm corpos esbeltos. Espanta como podem ter nascido no meio daquele ambiente sujo e degradado: são como flores rompendo do asfalto. Têm, por vezes, nomes inesperados. Como uma empregada de um restaurante a quem perguntamos como se chama e que sussurra numa voz meio cantada: «Êspêrança.» À noite, algumas destas raparigas divertem-se nas discotecas que sobrevivem na cidade, num simulacro de «movida».
Na capital de Angola também há lugar para os ricos. A zona das embaixadas assemelha-se a qualquer bairro elegante da Europa. E, sobretudo, o Mussulo: um conjunto de ilhas mesmo em frente de Luanda a que só se chega de barco ou de helicóptero e que reconstitui o paraíso: aí as pessoas importantes têm casa de fim-de-semana, as águas são azuis, as palmeiras crescem na areia e pescam-se pargos com camaroeiro.
Luanda é um caos. Uma Babel. A cidade que não se vê quando e como poderá ser recuperada. Mas onde, apesar de tudo, há um pulsar de vida e uma «economia». Fora de Luanda as coisas são diferentes - para melhor ou para pior.
Angola é um «puzzle» onde tudo muda de região para região: a paisagem, os recursos e até a qualidade do pessoal político. Em Cabinda sente-se a presença da guerra, ou melhor, da FLEC, que mantém os poderes públicos em alerta. O governador Amaro Taty, que viaja conosco desde Luanda, é esperado no aeroporto pelos vices, pelo chefe da polícia e por uma escolta militar: uma «pick-up» com a caixa cheia de soldados armados.
Sendo sede de uma província onde o petróleo jorra do chão (e do mar), Cabinda deveria estar rica. Mas dá a impressão de uma cidade-fantasma, governada por um homem de olhar atrevido para quem não parece haver obstáculos. Ele já viu tudo, conforme me confessa. Andou pelas ruas de Luanda a quando da matança de 1992 e teve de afastar os mortos para poder passar. Entrou em casas onde toda a família - os avós, os pais e os filhos bebês - jaziam assassinados no meio de poças de sangue. Mandou mobilizar os tratores de Luanda para recolher os corpos aos milhares, «porque as crianças não podiam assistir àquele espetáculo». Um homem que já viu tudo isto não recua perante nada.
Apesar do petróleo explorado há muitas décadas, Cabinda é uma cidade que parece partir agora do zero: o hospital - gerido por um grupo português - está a ser acabado, há escolas que começaram há pouco a funcionar, a estação de tratamento de água arrancou recentemente. Como se viveria aqui antes? Como seria possível sobreviver sem os chafarizes inaugurados no ano passado onde as mulheres e as crianças se amontoam para buscar água?
Benguela é diferente. O ambiente humano que se vive é outro. O governador Domilde Rangel, um negro que traja como qualquer ocidental bem vestido, fala lentamente e é contido nos gestos, sonha arrancar com a economia e lançou uma enorme extensão agrícola no Vale do Cavaco, que é a menina dos seus olhos. Visito com ele os campos cultivados, que se prolongam por muitos quilômetros. Há sobretudo milho, mas também cebolas, bananas e frutas tropicais. Numa estrada de terra entre os talhões cultivados vemos ao longe um amontoado de gente: são pessoas que vão ali trocar os seus produtos, como na época medieval. A aproximação dos jipes não motiva qualquer reação dos nativos. Uma mulher de 40 ou 50 anos, despida da cintura para cima, lava os seios pendentes - continuando a esfregá-los, indiferente à chegada do governador. Outra mulher dá de mamar a um bebê. Aqui e ali assa-se milho no chão.
À volta da cidade não há bairros de lata, como em Luanda, mas casas construídas em adobe, que se confundem com a terra, onde nascem como cogumelos. Aí a paisagem ganha uma dimensão bíblica.
Benguela é a província angolana onde há mais miscigenação. É o Brasil de Angola. Há pretos, mulatos de vários tons e brancos. O chefe de protocolo do governador - o senhor Toni - é um branco louro, de olhos azuis. Quando pergunto ao governador se há aqui racismo ele responde taxativamente que não: «Não há nenhum angolano que não tenha um amigo de infância, de quintal, branco - e a nossa cultura diz que aquele que cresce conosco no quintal é irmão.» Passeio à noite pelas ruas. Observa-se uma calma mortal e a mesma sensação de abandono que se vive em Luanda, embora aí haja vida e aqui, depois de escurecer, a cidade pareça um túmulo. Também em Benguela não se construiu mais nada desde a independência. Os estabelecimentos que continuam a funcionar, provavelmente de portugueses, parecem ter parado no tempo: os artigos são «démodés», estão desatualizados. Dir-se-ia que a moda, os gostos, também ficaram suspensos.
A 30 quilômetros de Benguela está o Lobito. Faz confusão como duas cidades importantes podem estar tão próximas - e, por isso, a rivalidade entre elas sempre foi enorme.
Enquanto Benguela fica numa enseada, o Lobito estende-se por uma língua de areia que quase fecha uma baía longa e estreita. Aqui existiam no dia 25 de Abril as vivendas dos portugueses ricos, que fazem lembrar as casas elegantes do Bairro do Restelo mas que foram ocupadas e estão hoje em grande parte degradadas. Os colonos faziam nesta cidade, durante todo o ano, a vida que na metrópole se fazia nas casas de férias durante o Verão. «Almoçávamos todos os dias na praia. O nosso pai vinha almoçar a casa, os empregados traziam as mesas para a areia, punham as toalhas, os pratos e os talheres e comíamos ali. Até o carrinho das bebidas vinha para a areia. Nunca mais passei tempos tão bons», diz um neto do antigo deputado André Navarro, que viveu no Lobito até à independência.
No extremo desta língua de areia, uma presença portuguesa impõe-se a todas as outras: a Praça do Império, com um cais das colunas idêntico ao do Terreiro do Paço. Todos os edifícios públicos que aqui se situam são herança da administração portuguesa: as Finanças, o Tribunal, a luxuosa sede da Associação Comercial - onde agora está instalada a sede local do MPLA. Aliás, curiosamente, nas cidades que visitei a sede do MPLA instalou-se nos antigos edifícios das associações comerciais.
Namibe, ex-Moçâmedes, tem uma localização incompreensível para quem chega por terra: como foi possível fundar uma cidade no fim do deserto? Tal como a maior parte das cidades de Angola, Namibe só se explica porque nasceu numa época em que as comunicações se faziam por mar. Situa-se, como Benguela, numa reentrância da costa onde os navios podiam fundear em segurança. Atrás de si fica o deserto de Moçâmedes, no qual, a poucos quilômetros da cidade, podemos observar a welwitschia mirabilis, uma planta fóssil que vive milhares de anos.
Na época colonial este deserto foi palco de uma tragédia que fez vibrar a população branca. Dois jovens, filhos de pessoas conhecidas do Lobito, foram passear de avião e acabaram por se despenhar no deserto. Sobreviveram durante mais de 30 dias e escreveram um diário - onde relataram a sua experiência até ao dia final. Se tivessem caminhado em direção ao mar ter-se-iam porventura salvo. Mas preferiram ficar ao pé dos destroços do avião, na esperança de serem localizados - o que só aconteceria muito tempo depois de morrerem, apesar das buscas desesperadas e diárias.
Em Namibe, uma das poucas indústrias que funcionam é um complexo de congelamento e conserva de peixe gerido por um grupo português. Curiosamente, o peixe seco exportado desta fábrica ostenta na caixa a seguinte menção: «Qualidade: Portugal». Explicam-me que esta marca de qualidade é a única que merece confiança em África. O diretor residente desta fábrica é um antigo general das FAPLA que me diz ter-se desiludido da vida militar ao assistir a dois cessar-fogo: um como comando do Exército português, outro como general das Forças Armadas de Angola.
Aí, pediu para sair da tropa - porque achou que a História se repetia e voltava ao mesmo sítio. Em frente daquela fábrica de conserva de peixe está um terminal de exportação de ferro, enorme e esquecido, que já deve ter vivido dias gloriosos. É a imagem de Angola: o contraste entre empreendimentos (normalmente geridos por estrangeiros) que funcionam e indústrias do tempo colonial que fecharam as portas. Acontece que as fábricas abandonadas são muito mais do que as que funcionam. Estas surgem como oásis no deserto, unidades vivas e operativas no meio de uma extensão abandonada.
Kuíto, na província do Bié, é o lugar que visitei onde tudo é diferente. Se em Benguela, no Lobito, em Cabinda e em Namibe se observa um país que parece querer dar os primeiros passos, ainda titubeantes, depois de uma longa espera, no Kuíto, antiga Silva Porto, somos brutalmente confrontados com a violência da guerra. Uma guerra feroz, bárbara, onde não houve lugar para perdão. Na zona envolvente da cidade ainda há muitos homens da UNITA e por isso o avião onde viajamos não pode aterrar normalmente: voa até à vertical do aeroporto e depois desce em espiral, fazendo círculos cada vez mais próximos da pista - cujo piso está completamente esburacado. O governador Paulino dos Santos explica que o asfalto se esgotou, pelo que têm de tapar os buracos com terra. Num dos topos da pista, um avião que se despistou jaz abandonado.
Também aqui temos escolta até à cidade - se se pode chamar cidade a um aglomerado de prédios totalmente destruídos. No Kuíto, tudo está como no instante em que as armas se calaram. Não há um único edifício de pé nem vestígios de obras de recuperação. O palácio do Governo, o orfanato, o cine-teatro, o pavilhão desportivo - todos estão esburacados e esventrados. Com as paredes crivadas de tiros e enormes rombos provocados por balas de tanque ou de canhão.
«Olhe que aqui não houve intervenção da aviação», explicam-me, chamando-me a atenção para que todos os estragos foram provocados por combates rua a rua, casa a casa. Há três mil corpos enterrados nos quintais ou nos corredores das casas, porque não havia segurança para os levar para o cemitério. Uma das moradias, onde viveu Savimbi antes da ocupação da cidade pelas tropas governamentais, está ainda mais desfeita do que as outras: tem milhares de orifícios tão próximos que em muitos deles devem estar balas sobrepostas. Prédios de habitação de sete e oito andares, da época colonial, têm as placas dos andares partidas e tombadas e os pilares de betão desfeitos.
No hospital, a sala de internamento das crianças subnutridas está repleta. São dezenas de camas encostadas umas às outras, quase sem espaço para circular. Em cada uma está uma mãe com uma criança ao colo. As mães têm um olhar perdido, desorientado, e as crianças um olhar de sofrimento. Não consigo encarar aqueles olhos que se voltam para mim quando entro: sinto pudor de sujeitar aquela gente à minha curiosidade. Noutra sala, onde estão os adultos, o responsável do hospital diz-nos, em voz bem audível, que os doentes podem ouvir perfeitamente: «Estas pessoas parecem estar na fase terminal, parece que vão morrer dentro de horas ou dias, mas vão recuperar.»
Aqui chegam também, todos os dias, cerca de 70 amputados - quase todos com falta de pernas arrancadas pelo rebentamento de minas. Dentro do hospital existe uma pequena fábrica onde se fazem pernas artificiais - e, associado a esta, um pequeno circuito, que faz lembrar os campos de minigolfe, onde os amputados aprendem a andar com as próteses: há uns degraus para subir, uma rampa para descer, uns obstáculos para transpor.
Só no hospital se fazem trabalhos de reabilitação. «Há pouco dinheiro, pelo que é necessário estabelecer prioridades», explica o governador.
O Kuíto está rodeado por campos de refugiados - deslocados, como se diz em Angola -, na sua maioria vindos do interior do país, fugidos à UNITA e à guerra. Buscam na cidade a proteção da tropa regular. Começaram por invadir o centro mas foram expulsos e instalados nas zonas limítrofes, porque a área urbana não tinha estruturas para os receber e ameaçava tornar-se uma tremenda confusão, com as pessoas a dormir e a fazer as necessidades nas ruas.
Depois da independência, muitas cidades angolanas viram a população crescer cinco vezes, com gente vinda dos campos, sem se ter construído um único prédio. Os deslocados vivem em tendas, à vista da cidade, esperando que a paz regresse e possam voltar às terras de origem. Mas voltarão? Ocupam áreas que antes eram cultivadas - fazendo a produção diminuir ainda mais. Assim, esta multidão só sobrevive à custa de alimentos oferecidos pelas Nações Unidas que chegam de avião ao maltratado aeroporto, três vezes por dia. Se este abastecimento for cortado, as pessoas começarão a morrer de fome. No acampamento só vejo mulheres e crianças. E os homens? - pergunto. Respondem-me que já partiram para as terras de origem para prepararem o regresso das famílias. Mas a maioria deve ter morrido na guerra ou está integrada nas tropas da UNITA ou nas Forças Armadas governamentais.
No Kuíto é tão difícil viver que o próprio governador está fora a maior parte do tempo. Viajou conosco desde Luanda num Beachcraft de seis lugares que ele elogia porque «voa muito alto». O voar alto nesta região é uma qualidade importante, porque representa o modo de fugir ao alcance das armas da UNITA.
Em todas as cidades sou recebido pelo governador local, com excepção de Namibe, pois o governador Xirimbimbi está ausente. Encontro-me com ele em Luanda, na sua casa situada num bairro modesto. É um homem corpulento que já foi ministro. A casa é uma vivenda que poderia pertencer a um bairro suburbano de Lisboa. Na sala de estar há uma mesa posta, coberta com uma toalha branca que esconde o que lá está (e que deve ser o nosso pequeno-almoço). Ao lado, fica um conjunto de sofás de cabedal, que poderiam ter sido comprados numa qualquer loja da Almirante Reis, assim como a mobília, de madeira polida e muito brilhante.
Na estante da sala misturam-se remédios com produtos de limpeza da cozinha. No tapete há brinquedos espalhados (o governador tem um filho pequeno) que também invadem um dos sofás.
É habitual os antigos ministros serem mandados para uma espécie de «desterro» nas províncias. Taty, o governador de Cabinda, e Rangel, o de Benguela, já foram membros do Governo. Xirimbimbi ocupou a pasta das Finanças. Fala com alguma nostalgia dessa época, sobretudo por não ter conseguido impor um rumo. Lamenta os ziguezagues da política econômica. Não vê alternativa à economia de mercado e acha que a atual opção pela iniciativa privada deveria ter sido assumida mais cedo. « Se o tivesse sido, a situação hoje seria melhor», diz-me. E o também ex-ministro Augusto Tomás, que participa na conserva, comenta: «Em Portugal queixam-se porque a gasolina aumentou vinte escudos. Aqui aumentou agora 1400%.»
Para resolver os problemas econômicos, toda a gente com quem falei em Angola defende convictamente o mercado. Pitra Neto, o influente ministro da área social, vai mais longe e afirma: «Mesmo que houvesse outra alternativa, era inútil, porque os países com quem temos de nos relacionar seguem este modelo e as nossas estruturas têm de se encaixar nas deles.»
Todos dizem também desejar o regresso dos portugueses. Como não existe em Angola sociedade civil, a economia só pode arrancar se houver empresários estrangeiros decididos a investir. Ora, entre os estrangeiros, os portugueses são os mais desejados. Porquê? Porque a língua é um elemento de aproximação insubstituível. No mais recôndito dos lugares, depois de voarmos milhares de quilômetros, ouvimos as pessoas falar português. E as alternativas não são melhores. «Os russos são racistas», diz-me o nosso motorista, «desprezam as nossas mulheres». Os cubanos, embora alguns se tenham integrado bem, trabalhando nos serviços ou funcionando como enfermeiros ou médicos nos hospitais, não têm naturalmente espírito empresarial (ou não viessem de um país socialista...). Quanto aos franceses ou aos americanos, fazem uma vida à parte e não têm contatos com os nativos. Estão lá para ganhar dinheiro e voltar para os seus países, como acontece em Cabinda, em que os empregados da Chevron construíram um gueto a 20 quilômetros da cidade donde quase não saem. «Se eles se tivessem instalado em Cabinda, a cidade tinha-se desenvolvido muito mais», lamenta-se um dos vice-governadores.
É por isso que os portugueses são desejados. Eles misturam-se. Para lá da língua e da cultura, há entre os portugueses e os angolanos outros pontos em comum. « Portugal está hoje num estádio de desenvolvimento em que o seu nível de tecnologia é aquele que satisfaz plenamente Angola», afirma o governador de Benguela. E há ainda o futebol. Em Angola, toda a gente, desde os miúdos aos adultos, acompanha semanalmente o futebol em Portugal, sabe as peripécias dos jogos e vibra com as polêmicas.
Não há ninguém que não seja simpatizante de um clube português. O Benfica é o mais popular, seguido pelo Sporting, o Porto e o Belenenses, estes dois em muito menor número. A vitória do Sporting no campeonato foi festejada em Luanda com buzinadelas e festa nas ruas. À entrada da capitania do porto do Lobito, um sentinela monta guarda com um cachecol às riscas verdes e brancas ao pescoço. O padre Carlos, uma figura de Cabinda que dirige um orfanato (algumas das suas crianças foram encontradas nas lixeiras) explica que, quando era miúdo, «ser do Benfica significava ser amigo de Portugal».
Os exemplos da presença portuguesa em Angola sucedem-se. Em Benguela, o Hotel Mumbaka, o único que funciona - propriedade de uma empresa que se diz estar ligada ao MPLA - tem um diretor português, o senhor Caldas, depois de experiências falhadas com gerentes de outras nacionalidades. A biblioteca do Centro Cultural Português, à qual o embaixador Ramalho Ortigão vota um especial carinho, está permanentemente à cunha e tem todos os dias filas de espera à porta: são jovens que preparam trabalhos para o secundário ou para a universidade. Os angolanos, pelo menos aqueles que tiveram contatos mais estreitos com os portugueses, não se consideram bem africanos. Pepetela, um conhecido escritor angolano premiado em Portugal, diz-me: «Angola não é África.»
A pergunta que me fica é se ainda haverá futuro para este país tão rico, tão devastado e tão desorganizado. No plano interno, a guerra tanto pode durar um mês como anos. Se as Forças Armadas capturarem Savimbi, a guerra acabará no dia seguinte; se não, poderá arrastar-se interminavelmente. Sobre Savimbi correm em Luanda as histórias mais diabólicas. Diz-se que numa roda com outras pessoas ele terá perguntado: «Qual é a suprema manifestação de virilidade?» Uns falaram de «performances» sexuais, outros de resistência ao álcool, outros ainda de força física. Mas ele concluiu, definitivo: «É dormir com a sogra.»
Estas histórias são provavelmente inventadas - mas dão o ambiente que se vive nas cidades em relação à UNITA. Não há possibilidade de novas negociações entre o MPLA e a UNITA. Mesmo que José Eduardo dos Santos o desejasse, não tinha condições para o fazer: nem o partido nem as Forças Armadas o aceitariam. O fim do conflito depende pois, inteiramente, da solução militar. Curiosamente, 25 anos depois da independência, o problema de Angola volta a ser o mesmo. Há 25 anos, os portugueses estavam no poder e os movimentos de libertação prosseguiam uma guerra de guerrilha; hoje, o MPLA está no poder e a UNITA (que abandonou a guerra convencional) desenvolve uma guerra de guerrilha. Talvez também por isto, o chefe supremo das Forças Armadas, João de Matos, um general de 44 anos formado na União Soviética mas amigo de muitos oficiais portugueses, atribua tanta importância «à participação de Portugal na reorganização do exército angolano».
Quanto a José Eduardo dos Santos, é hoje um monge com muito dinheiro no estrangeiro, segundo se diz, que vive num palácio à beira-mar no meio de uma enorme quinta cheia de homens armados: o Futungo de Belas. Ele sabe que a saída do poder lhe pode custar a vida. «Na Europa, o risco é perder o poder», disse um dia Marcelo Rebelo de Sousa, «em África, é perder a vida». Sempre que vai ao centro da cidade o Presidente rodeia-se de medidas de segurança superiores àquelas que normalmente envolvem um Chefe de Estado em visita a um país estrangeiro. Há atiradores em todas as esquinas e helicópteros sobrevoam Luanda em várias direções.
É este homem que conserva fechado na mão o poder político. Quanto ao futuro de Angola, ele depende da economia. Esta é ainda muito frágil e a inflação, para o ano, «vai ter ainda três dígitos», segundo me diz o governador do Banco de Angola, Aguinaldo Jaime. « Mas está a recuperar», acrescenta. Nesta recuperação, a História parece ter reservado aos portugueses um importante papel. Para Portugal, Angola pode ser um desígnio: é um espaço imenso e rico aberto à aventura. Resta saber se os portugueses ainda têm forças para isso.
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